terça-feira, 7 de julho de 2020

Negros morrem mais de Covid-19 do que os brancos


Do primeiro ministro britânico Boris Johnson ao ator Tom Hanks, da influenciadora digital Gabriela Pugliesi à cantora Preta Gil, o início do surto, o novo coronavírus pareceu não poupar ninguém: todos estariam igualmente expostos à doença. O governador de Nova York, Andrew Cuomo, chegou a afirmar que o coronavírus era um “grande equalizador” ao divulgar que seu irmão mais novo havia contraído o vírus. À primeira vista, o raciocínio parece lógico: se ninguém tem imunidade contra microrganismo, que não escolhe suas vítimas, em tese todos estão sujeitos ao mesmo risco de infecção.

Não demorou muito para que dados derrubassem o equívoco e escancarassem o impacto das desigualdades sociais na prevenção e propagação da pandemia. Em países como Estados Unidos e Brasil, campeões de casos no mundo, é quase impossível não falar de desigualdade social e racismo. Por aqui, 75% dos mais pobres são negros, segundo um levantamento realizado em 2018 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que apontou como pretos e pardos trabalham, estudam e recebem menos que os brancos no país.
Nos Estados Unidos, primeira nação das Américas a ver a escalada dos casos, a desproporção é gritante. Embora 18% da população do país seja negra, 52% dos casos e 58% das mortes por Covid-19 são de pacientes negros, segundo um relatório da amfAR publicado no início de maio. Em estados como Geórgia, Louisiana e Alabama, as disparidades são ainda maiores, conforme mostra o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC): na Geórgia, 83% dos internados são negros, que correspondem a 32% da população; em Louisiana, estado com 33% da população negra, as mortes afroamericanas equivalem a 70%; e, no Alabama, a proporção de mortes é de 44% em uma população de 26%.
No Brasil, os dados do Ministério da Saúde sequer eram separados por cor no início da pandemia. Os boletins só passaram a incluir tais números a partir do dia 11 de abril, quase um mês e meio depois da confirmação do primeiro caso de Covid-19, e graças à pressão da Coalizão Negra por Direitos, um grupo de 150 entidades que, no início de abril, enviou uma carta ao Ministério da Saúde e às secretarias de saúde de todos os estados pedindo a divulgação da cor, do gênero e dos bairro dos infectados. “A quantidade de notificação sem informação de cor só reforça o racismo institucional, que invisibiliza os negros”, diz a médica Rita Helena Espirito Santo Borret, coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) de Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
Os dados são desanimadores: uma análise da Agência Pública mostrou que há uma morte para cada três brasileiros negros hospitalizados por Covid-19, enquanto entre brancos a proporção é de uma morte a cada 4,4 internações. Em São Paulo, cidade com o maior número de casos, bairros com maior concentração de negros têm mais óbitos pela doença. Dos dez com o maior número absoluto de mortes por coronavírus, oito têm mais negros que a média municipal.
Um estudo liderado por pesquisadores da PUC-Rio e divulgado no último dia 27 de maio evidencia ainda mais essas disparidades. Em termos de óbitos por Covid-19, pessoas sem escolaridade têm taxas três vezes maiores (71,3%) em relação àqueles com nível superior (22,5%). Combinando raça e índice de escolaridade, o cenário fica ainda mais desigual: pretos e partos sem escolaridade morrem quatro vezes mais pelo novo coronavírus do que brancos com nível superior (80,35% contra 19,65%). Considerando a mesma faixa de escolaridade, pretos e pardos apresentam proporção de óbitos 37% maior, em média, do que brancos.
“Entendemos que o racismo está estruturado na nossa sociedade, e por isso impacta a vida de todos de diferentes formas”, diz Luís Eduardo Batista, pesquisador do Instituto de Saúde da Secretaria de Saúde de São Paulo. “Ele interfere no acesso aos serviços, na qualidade e até nas relações do usuário com o profissional", complementa Batista, que também é coordenador do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
E isso é uma via de mão dupla: vale tanto para pacientes que não confiam ou se recusam a ser atendidos por profissionais de saúde negros quanto para médicos e enfermeiros que não estão preparados para lidar com a população negra. “Existe uma reprodução do racismo institucional na instituição saúde”, avalia Borret. "Médicos e todos os outros profissionais da saúde são pessoas da mesma sociedade, que é racista. Na medicina e em outros cursos, não há cuidado de atentar para a saúde da população negra, isso hierarquiza as pessoas que têm mais direito a viver, e neste caso são os brancos”, analisa a médica. 
Desigualdade estrutural
Até o momento, não foi identificado se há componentes genéticos que aumentem o risco da população negra acometida pelo novo coronavírus. Sabe-se, no entanto, que ela tem maior predisposição a diabetes e hipertensão, condições que aparecem como comorbidades em vítimas de Covid-19. Ainda assim, explica o representante da Abrasco, esse tipo de informação costuma ser negligenciada pela comunidade médica. “A Sociedade Brasileira de Hipertensão, por exemplo, não avisa os profissionais em seus materiais que negros têm níveis pressóricos mais altos”, observa.

Mesmo com a predisposição às comorbidades, os principais fatores que deixam a população negra mais vulnerável ao novo coronavírus são sociais. “A população negra tem menos acesso a saneamento, vive mais concentrada, com mais trabalho informal ou desemprego”, diz Borret. “Falam ‘lave as mãos’, mas não tem saneamento básico e água encanada. Falam ‘vamos fazer isolamento’, mas que isolamento social é esse, se porteiros e cozinheiras continuam tendo que trabalhar?”, critica Batista. Esses fatores sociais podem, aliás, ser relacionados às próprias comorbidades: pobres têm mais obesidade, diabetes, hipertensão e colesterol alto por falta de dietas equilibradas (o maior exemplo é a cesta considerada básica, que não costuma incluir frutas e verduras).
O acesso aos serviços de saúde também está relacionado a fatores sociais. A começar pela própria localização deles — os hospitais de campanha de São Paulo, por exemplo, foram construídos no centro da cidade, embora haja mais casos na periferia. E quase 80% da população brasileira que depende do Sistema Único de Saúde (SUS) se autodeclara negra, mas somente 44% dos leitos de unidade de terapia intensiva (UTIs) estão no sistema. “Ter um sistema único garante o mínimo de cuidado, mas quando olhamos para a distribuição dos leitos de UTI, respiradores, e outros equipamentos necessários no tratamento da Covid-19, ela é muito desigual”, destaca Borret.
Política da morte
“Vivemos hoje em uma política que propõe que quem tem dinheiro vai ter acesso à saúde, e há pessoas autorizadas a morrer: pretas, pobres e periféricas”, pontua a médica da SBMFC. É o fenômeno da “necropolítica”, termo cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, que investiga como governos decidem quem vive e quem morre, e de que maneira isso vai acontecer. O exemplo máximo foi a frase dita pelo presidente Jair Bolsonaro no início da pandemia: “alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, essa é a vida.”

É a certeza, velada ou subconsciente, de que não fazem parte desse “alguns” que leva muita gente a fazer pouco caso da nova pandemia, reforçando a ideia de que ela não é nada democrática. “Para algumas pessoas, está tudo certo este pacto social que temos de que muitos vão morrer, mas estes muitos não serão os meus, porque minha família está aqui protegida”, ilustra Batista.
Por mais recente que seja o termo necropolítica (Mbembe o descreveu em 2003) e que no início a pandemia de fato tenha se espalhado pelas elites brancas, ela já começa a seguir um curso que não é nenhuma novidade na história: na medida em que os mais ricos superam a doença e conseguem frear o contágio entre si, criando uma espécie de “bolha”, e ela se espalha para as camadas mais pobres, a enfermidade passa a ser negligenciada.
Passado que se repete
Foi assim com a peste bubônica em 1349. Segundo a revista Scicence, o cronista francês Gilles Li Muisis chegou a escrever que “nem os ricos, a classe média, nem os pobres estavam seguros; cada um teve que esperar a vontade de Deus.” De fato, entre 1347 e 1351, de 30% a 60% dos europeus padeceram por causa da peste. A França perdeu quase metade de sua população, assim como a cidade de Londres, uma das maiores metrópoles já naquela época.

Mas estudos arqueológicos recentes, que avaliaram esqueletos em cemitérios criados especificamente para as vítimas da peste, identificaram que as desigualdades sociais e econômicas desenharam o rumo da pandemia. E, após a primeira grande onda, os ricos começaram a se isolar logo no início de novos surtos. Entre 1563 e 1665, a mortalidade da peste entre as camadas mais ricas de Londres teve uma redução significativa, enquanto permanecia igual ou crescia entre os mais pobres, segundo registros de batismos e certidões de óbito. Não à toa, médicos italianos passaram a considerar a peste uma doença dos pobres.
O ciclo se repete até hoje. “Se olhar para todas as doenças infecciosas que não conseguimos erradicar no nosso país, como tuberculose e hanseníase, elas são mais frequentes entre a população preta e pobre”, diz Borret. “Porque a população que tem dinheiro e acesso consegue achar meios para diminuir a contaminação entre si, e aí isola o agente infeccioso entre a população que está autorizada a morrer. Isso, que está acontecendo agora com o coronavírus e pode ser que aconteça de novo mais para frente, não é nada novo, é o caminho natural que as doenças infecciosas seguem no nosso país.”
Para quebrar este ciclo, é preciso mais do que medidas imediatistas de combate a surtos epidêmicos, que são importantes, mas não resolvem o verdadeiro problema: o racismo estrutural que vem desde os tempos de colonização. “No Brasil, logo depois da escravidão, nunca houve políticas para integrar os negros na população”, diz a especialista da SBMFC. “A população negra pode até ser a maioria em número, mas é minoria em poder, e não é representada, está sempre na subalternidade.”
A pandemia pode até ter feito parcelas da sociedade civil finalmente enxergarem populações vulneráveis e invisibilizadas, mas seu efeito equalizador para por aí — porque, pelo visto, este será mais um episódio da história com o qual vamos aprender muito pouco ou, talvez, nada.
Fonte: Galileu

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