segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Transcrição da aula sobre racismo estrutural do professor Roger Machado

Roger, do Bahia e Marcão, do Fluminense, vestindo a camisa do Observatório Contra a Discriminação Racial no Futebol.


A entrevista que o treinador do Bahia, Roger Machado, concedeu após a derrota da sua equipe para o Fluminense repercutiu muito mais que o resultado da partida, principalmente, porque não é comum alguém expor as obviedades do "racismo à brasileira" assim, ao vivo. Aproveitando o Dia do Professor, segue a transcrição que fiz da sua resposta sobre a campanha do Observatório Contra a Discriminação Racial no Futebol, e que acabou se tornando uma verdadeira aula sobre o racismo institucional no futebol e na sociedade como um todo:




Não deveria chamar atenção e ter uma repercussão grande dois treinadores Negros estarem se enfrentando na área técnica, depois de terem tido uma passagem como protagonistas dentro do campo. Pra mim, isso é a prova de que existe um preconceito, porque é algo que chama atenção, à medida em que a gente tem mais de 50% da população Negra e a proporcionalidade que se representa não é igual.

Eu acho que a gente tem que refletir e se questionar: se não há preconceito no Brasil, por que é que os Negros “conseguem” ter um nível de escolaridade menor que o dos brancos?
Por que  70% da população carcerária é Negra? Por que  quem mais morrem são os jovens Negros no Brasil? Por que  os menores salários entre os brancos e Negros são pros Negros? Entre as mulheres brancas e Negras, são pras Negras?  Entre as mulheres, por que quem mais morrem são as mulheres Negras?

Há diversos tipos de preconceito. Nas conquistas pelas mulheres, por exemplo, hoje, nós vemos mulheres no esporte, como você [falando com a jornalista do Fox Sports], mas quantas mulheres Negras têm comentando esporte? Então, nós temos que nos perguntar: Se não há preconceito no Brasil, qual é a resposta que tem relacionada a isso?



Pra mim, nós vivemos um preconceito estrutural. Institucionalizado. E quando eu respondo pras pessoas que eu nunca sofri preconceito diretamente, a ofensa, a injúria, ela é só um sintoma dessa grande causa social que nós temos. Porque a responsabilidade é de todos nós, mas a culpa desse atraso, depois de 388 anos de escravidão é do Estado. Porque é através dele que essas políticas públicas que, nos últimos 15 anos, foram institucionalizadas e resgataram a autoestima dessas populações, que, ao longo de muitos anos, tiveram negado o acesso a assistências básicas, elas estão sendo retiradas nesse momento.

Na verdade, esses casos que estão havendo agora de aumento de feminicídio , homofobia, os casos diretos de preconceito racial, como eu disse, é um sintoma, porque a estrutura social é racista. Ela sempre foi racista. Porque nós temos um sistema de crenças e regras que é estabelecido pelo poder. E o poder é o poder do Estado, é o poder das comunicações, é o poder da igreja.

Quando esses poderes não enxergam ou não querem aceitar  e assumir que o racismo existiu e que precisa haver uma correção nesse curso, muitas vezes dizem que nós estamos nos “vitimando” ou que há um “racismo reverso”. Mas a bem da verdade é que 10 milhões de indivíduos foram escravizados. Mais de 25 gerações. Isso passou pelo Brasil Colônia, pelo Império e só mascarou no Brasil República. E a gente precisa falar sobre isso. Nós precisamos sair da fase da negação.

Nós negamos: “não, eu não falo sobre isso porque não existe racismo no Brasil”, em cima do mito da democracia racial. Negar e silenciar é confirmar o racismo. E a minha posição, que eu ocupo hoje, como  um Negro na elite do futebol brasileiro é pra confirmar isso. O maior preconceito que eu senti não foi o de “injúria racial”. Eu sinto que há preconceito quando eu vou no restaurante e só tem eu de Negro. Na faculdade que eu fiz, só tinha eu de Negro. E isso é a prova pra mim.
Mas, mesmo assim, rapidamente, quando a gente fala disso, ainda tentam dizer: “não há racismo, ta vendo? Você tá aqui. Você é a prova de que não há racismo”. Não, eu sou a prova de que há racismo porque eu tô aqui.

(Roger Machado, técnico do Bahia, em 12 de outubro de 2019)

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Fluminense x Bahia: Os dois únicos clubes com técnicos Negros no Campeonato Brasileiro

Roger Machado, treinador do Bahia

A partida do próximo sábado, entre Fluminense e Bahia, no Maracanã, vai colocar frente a frente, os dois únicos técnicos negros da Série A do Brasileiro. Isto porque, até semana passada, antes de Marcão ser efetivado como treinador do Tricolor carioca, Roger Machado era, até então, o único entre os 20 que comandam times da elite do futebol brasileiro. Se estendermos o leque até a Série B, o panorama fica ainda pior: incluímos Hemerson Maria, do Botafogo-SP, na lista, mas contabilizamos apenas três treinadores negros entre os 40 times das duas primeiras divisões do futebol nacional.
Tal número deveria causar espanto no meio do futebol. Afinal, segundo dados da Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) 2018, divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 55,8% da população brasileira se autodeclara preto ou pardo. Num país em que a maioria dos jogadores é negra, a maioria das grandes estrelas da história do nosso futebol também é negra, temos pouquíssimos treinadores negros. A estatística, de longe, não é refletida entre os técnicos no Brasil.
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Marcão, técnico efetivado pelo Fluminense.
O número de treinadores negros no futebol brasileiro é tão baixo que é possível lembrar da maioria dos que passaram pelos grandes centros do futebol nacional nos últimos anos num pequeno exercício de memória. Além dos três citados acima, temos Cristóvão Borges, Jair Ventura, Sérgio Soares, Joel Santana, Givanildo de Oliveira, Jayme de Almeida e Andrade… Os dois últimos chegaram a conquistar títulos importantes pelo Flamengo, mas não tiveram sequência na carreira. Além do cargo de treinador, também vemos poucos negros nos cargos diretivos dos clubes brasileiros. O ex-jogador Tinga teve passagem como gerente de futebol do Cruzeiro, mas foi a exceção em meio àregra.
A régua para medir a capacidade dos técnicos negros no futebol parece ser sempre colocada um pouco acima em relação aos demais. Deslizes não são permitidos, falhas ficam marcadas e mais oportunidades não são dadas. Afinal, por que tantos e tantos técnicos de qualidade questionável se revezam na dança das cadeiras dos clubes das Séries A e B, e os técnicos negros, muitas vezes pouco testados, não entram nesse jogo?
Mais do que constatar que essa é mais uma das faces do racismo velado da sociedade brasileira, que muitas vezes não vê o negro como uma pessoa capaz de exercer cargos de comando ou trabalhos que exigem mais do intelecto, é preciso combater o preconceito e este racismo desde a base. E não só no futebol, que apenas reflete todos os problemas que temos no nosso país.
Fonte: Observatório da Discriminação Racial no Futebol