quarta-feira, 29 de julho de 2020

A naturalização das desigualdades



"Ainda que hoje seja quase um lugar-comum a afirmação de que a antropologia surgida no início do século XX e a biologia - especialmente a partir do sequenciamento do genoma - tenham há muito demonstrado que não existem diferenças biológicas ou culturais que justifiquem um tratamento discriminatório entre seres humanos, o fato é que a noção de raça ainda é um fator político importante, utilizado para naturalizar desigualdades e legitimar a segregação e o genocídio de grupos sociologicamente considerados minoritários".
(Silvio Almeida, Racismo Estrutural, p. 31).


sábado, 25 de julho de 2020

25 de Julho - Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha!


O local de nascimento de Tereza de Benguela é desconhecido. Ela pode ter nascido em algum país do continente africano ou no Brasil, mas sua vida faz parte da história pouco contada do Brasil.
Tereza viveu no século XVIII e foi casada com José Piolho, que chefiava o Quilombo do Piolho até ser assassinado por soldados do Estado. O Quilombo do Piolho também era conhecido como Quilombo do Quariterê (a atual fronteira entre Mato Grosso e Bolívia). Esse quilombo foi o maior do Mato Grosso.
Com a morte de José Piolho, Tereza se tornou a líder do quilombo, e, sob sua liderança, a comunidade negra e indígena resistiu à escravidão por duas décadas.
O Quilombo do Quariterê abrigava mais de 100 pessoas, com destacada presença de negros e indígenas. Tereza navegava com barcos imponentes pelos rios do pantanal. E todos a chamavam de “Rainha Tereza”.
O Quilombo, território de difícil acesso, foi o ambiente perfeito para Tereza coordenar um forte aparato de defesa e articular um parlamento para decidir em grupo as ações da comunidade, que vivia do cultivo de algodão, milho, feijão, mandioca, banana, e da venda dos excedentes produzidos.
Tereza comandou a estrutura política, econômica e administrativa do quilombo, mantendo um sistema de defesa com armas trocadas com os brancos ou roubadas das vilas próximas. Os objetos de ferro utilizados contra a comunidade negra que lá se refugiava eram transformados em instrumentos de trabalho, visto que dominavam o uso da forja.
“Governava esse quilombo a modo de parlamento, tendo para o conselho uma casa destinada, para a qual, em dias assinalados de todas as semanas, entrava os deputados, sendo o de maior autoridade, tipo por conselheiro, José Piolho, escravo da herança do defunto Antônio Pacheco de Morais, Isso faziam, tanto que eram chamados pela rainha, que era a que presidia e que naquele negral Senado se assentava, e se executava à risca, sem apelação nem agravo.” - Anal de Vila Bela do ano de 1770
Não se tem registros de como Tereza morreu. Uma versão é que ela se suicidou depois de ser capturada por bandeirantes a mando da capitania do Mato Grosso, por volta de 1770, e outra afirma que Tereza foi assassinada e teve a cabeça exposta no centro do Quilombo.
O Quilombo resistiu até 1770, quando foi destruído pelas forças de Luís Pinto de Sousa Coutinho. A população na época era de 79 negros e 30 índios.
Em homenagem a Tereza de Benguela, o dia 25 de julho é oficialmente no Brasil o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. A data comemorativa foi instituída pela Lei n° 12.987/2014.
Além da data comemorativa, a rainha Tereza foi homenageada nos versos da escola de samba Unidos do Viradouro, com o enredo da agremiação de 1994, cujo título é ‘Tereza de Benguela – Uma Rainha Negra no Pantanal’.
Fonte: Biblioteca da CECULT - Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

domingo, 19 de julho de 2020

Morre John Lewis, um dos ícones da luta pelos direitos civis nos EUA



O congressista John Lewis, importante ativista na histórica luta pela igualdade racial nos EUA morreu nesta sexta-feira, 17 de julho. Ele tinha 80 anos.

Sua morte foi confirmada em uma declaração de Nancy Pelosi, a presidente da Câmara dos Deputados. Lewis, da Geórgia, anunciou em 29 de dezembro que estava com câncer de pâncreas no estágio 4 e prometeu combatê-lo com a mesma paixão com a qual lutou contra a injustiça racial. "Eu estive em algum tipo de luta - por liberdade, igualdade, direitos humanos básicos - por quase toda a minha vida", disse ele.

Nas linhas de frente da sangrenta campanha para acabar com as leis de Jim Crow, com golpes no corpo e um crânio fraturado para provar isso, Lewis era um valente defensor do movimento dos direitos civis e o último orador sobrevivente na histórica marcha em Washington por Emprego e Liberdade em 1963.

Mais de meio século depois, após o assassinato em maio de George Floyd, Lewis parabenizou as manifestações globais contra os assassinatos cometidos pela polícia contra pessoas negras e, mais amplamente, sob o racismo sistêmico de muitos países. Ele viu esses protestos como uma continuação do trabalho de sua vida, embora sua doença o tivesse deixado assistir do lado de fora.

Fontes: The New York Times/ Mídia Ninja

terça-feira, 7 de julho de 2020

Negros morrem mais de Covid-19 do que os brancos


Do primeiro ministro britânico Boris Johnson ao ator Tom Hanks, da influenciadora digital Gabriela Pugliesi à cantora Preta Gil, o início do surto, o novo coronavírus pareceu não poupar ninguém: todos estariam igualmente expostos à doença. O governador de Nova York, Andrew Cuomo, chegou a afirmar que o coronavírus era um “grande equalizador” ao divulgar que seu irmão mais novo havia contraído o vírus. À primeira vista, o raciocínio parece lógico: se ninguém tem imunidade contra microrganismo, que não escolhe suas vítimas, em tese todos estão sujeitos ao mesmo risco de infecção.

Não demorou muito para que dados derrubassem o equívoco e escancarassem o impacto das desigualdades sociais na prevenção e propagação da pandemia. Em países como Estados Unidos e Brasil, campeões de casos no mundo, é quase impossível não falar de desigualdade social e racismo. Por aqui, 75% dos mais pobres são negros, segundo um levantamento realizado em 2018 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que apontou como pretos e pardos trabalham, estudam e recebem menos que os brancos no país.
Nos Estados Unidos, primeira nação das Américas a ver a escalada dos casos, a desproporção é gritante. Embora 18% da população do país seja negra, 52% dos casos e 58% das mortes por Covid-19 são de pacientes negros, segundo um relatório da amfAR publicado no início de maio. Em estados como Geórgia, Louisiana e Alabama, as disparidades são ainda maiores, conforme mostra o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC): na Geórgia, 83% dos internados são negros, que correspondem a 32% da população; em Louisiana, estado com 33% da população negra, as mortes afroamericanas equivalem a 70%; e, no Alabama, a proporção de mortes é de 44% em uma população de 26%.
No Brasil, os dados do Ministério da Saúde sequer eram separados por cor no início da pandemia. Os boletins só passaram a incluir tais números a partir do dia 11 de abril, quase um mês e meio depois da confirmação do primeiro caso de Covid-19, e graças à pressão da Coalizão Negra por Direitos, um grupo de 150 entidades que, no início de abril, enviou uma carta ao Ministério da Saúde e às secretarias de saúde de todos os estados pedindo a divulgação da cor, do gênero e dos bairro dos infectados. “A quantidade de notificação sem informação de cor só reforça o racismo institucional, que invisibiliza os negros”, diz a médica Rita Helena Espirito Santo Borret, coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) de Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
Os dados são desanimadores: uma análise da Agência Pública mostrou que há uma morte para cada três brasileiros negros hospitalizados por Covid-19, enquanto entre brancos a proporção é de uma morte a cada 4,4 internações. Em São Paulo, cidade com o maior número de casos, bairros com maior concentração de negros têm mais óbitos pela doença. Dos dez com o maior número absoluto de mortes por coronavírus, oito têm mais negros que a média municipal.
Um estudo liderado por pesquisadores da PUC-Rio e divulgado no último dia 27 de maio evidencia ainda mais essas disparidades. Em termos de óbitos por Covid-19, pessoas sem escolaridade têm taxas três vezes maiores (71,3%) em relação àqueles com nível superior (22,5%). Combinando raça e índice de escolaridade, o cenário fica ainda mais desigual: pretos e partos sem escolaridade morrem quatro vezes mais pelo novo coronavírus do que brancos com nível superior (80,35% contra 19,65%). Considerando a mesma faixa de escolaridade, pretos e pardos apresentam proporção de óbitos 37% maior, em média, do que brancos.
“Entendemos que o racismo está estruturado na nossa sociedade, e por isso impacta a vida de todos de diferentes formas”, diz Luís Eduardo Batista, pesquisador do Instituto de Saúde da Secretaria de Saúde de São Paulo. “Ele interfere no acesso aos serviços, na qualidade e até nas relações do usuário com o profissional", complementa Batista, que também é coordenador do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
E isso é uma via de mão dupla: vale tanto para pacientes que não confiam ou se recusam a ser atendidos por profissionais de saúde negros quanto para médicos e enfermeiros que não estão preparados para lidar com a população negra. “Existe uma reprodução do racismo institucional na instituição saúde”, avalia Borret. "Médicos e todos os outros profissionais da saúde são pessoas da mesma sociedade, que é racista. Na medicina e em outros cursos, não há cuidado de atentar para a saúde da população negra, isso hierarquiza as pessoas que têm mais direito a viver, e neste caso são os brancos”, analisa a médica. 
Desigualdade estrutural
Até o momento, não foi identificado se há componentes genéticos que aumentem o risco da população negra acometida pelo novo coronavírus. Sabe-se, no entanto, que ela tem maior predisposição a diabetes e hipertensão, condições que aparecem como comorbidades em vítimas de Covid-19. Ainda assim, explica o representante da Abrasco, esse tipo de informação costuma ser negligenciada pela comunidade médica. “A Sociedade Brasileira de Hipertensão, por exemplo, não avisa os profissionais em seus materiais que negros têm níveis pressóricos mais altos”, observa.

Mesmo com a predisposição às comorbidades, os principais fatores que deixam a população negra mais vulnerável ao novo coronavírus são sociais. “A população negra tem menos acesso a saneamento, vive mais concentrada, com mais trabalho informal ou desemprego”, diz Borret. “Falam ‘lave as mãos’, mas não tem saneamento básico e água encanada. Falam ‘vamos fazer isolamento’, mas que isolamento social é esse, se porteiros e cozinheiras continuam tendo que trabalhar?”, critica Batista. Esses fatores sociais podem, aliás, ser relacionados às próprias comorbidades: pobres têm mais obesidade, diabetes, hipertensão e colesterol alto por falta de dietas equilibradas (o maior exemplo é a cesta considerada básica, que não costuma incluir frutas e verduras).
O acesso aos serviços de saúde também está relacionado a fatores sociais. A começar pela própria localização deles — os hospitais de campanha de São Paulo, por exemplo, foram construídos no centro da cidade, embora haja mais casos na periferia. E quase 80% da população brasileira que depende do Sistema Único de Saúde (SUS) se autodeclara negra, mas somente 44% dos leitos de unidade de terapia intensiva (UTIs) estão no sistema. “Ter um sistema único garante o mínimo de cuidado, mas quando olhamos para a distribuição dos leitos de UTI, respiradores, e outros equipamentos necessários no tratamento da Covid-19, ela é muito desigual”, destaca Borret.
Política da morte
“Vivemos hoje em uma política que propõe que quem tem dinheiro vai ter acesso à saúde, e há pessoas autorizadas a morrer: pretas, pobres e periféricas”, pontua a médica da SBMFC. É o fenômeno da “necropolítica”, termo cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, que investiga como governos decidem quem vive e quem morre, e de que maneira isso vai acontecer. O exemplo máximo foi a frase dita pelo presidente Jair Bolsonaro no início da pandemia: “alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, essa é a vida.”

É a certeza, velada ou subconsciente, de que não fazem parte desse “alguns” que leva muita gente a fazer pouco caso da nova pandemia, reforçando a ideia de que ela não é nada democrática. “Para algumas pessoas, está tudo certo este pacto social que temos de que muitos vão morrer, mas estes muitos não serão os meus, porque minha família está aqui protegida”, ilustra Batista.
Por mais recente que seja o termo necropolítica (Mbembe o descreveu em 2003) e que no início a pandemia de fato tenha se espalhado pelas elites brancas, ela já começa a seguir um curso que não é nenhuma novidade na história: na medida em que os mais ricos superam a doença e conseguem frear o contágio entre si, criando uma espécie de “bolha”, e ela se espalha para as camadas mais pobres, a enfermidade passa a ser negligenciada.
Passado que se repete
Foi assim com a peste bubônica em 1349. Segundo a revista Scicence, o cronista francês Gilles Li Muisis chegou a escrever que “nem os ricos, a classe média, nem os pobres estavam seguros; cada um teve que esperar a vontade de Deus.” De fato, entre 1347 e 1351, de 30% a 60% dos europeus padeceram por causa da peste. A França perdeu quase metade de sua população, assim como a cidade de Londres, uma das maiores metrópoles já naquela época.

Mas estudos arqueológicos recentes, que avaliaram esqueletos em cemitérios criados especificamente para as vítimas da peste, identificaram que as desigualdades sociais e econômicas desenharam o rumo da pandemia. E, após a primeira grande onda, os ricos começaram a se isolar logo no início de novos surtos. Entre 1563 e 1665, a mortalidade da peste entre as camadas mais ricas de Londres teve uma redução significativa, enquanto permanecia igual ou crescia entre os mais pobres, segundo registros de batismos e certidões de óbito. Não à toa, médicos italianos passaram a considerar a peste uma doença dos pobres.
O ciclo se repete até hoje. “Se olhar para todas as doenças infecciosas que não conseguimos erradicar no nosso país, como tuberculose e hanseníase, elas são mais frequentes entre a população preta e pobre”, diz Borret. “Porque a população que tem dinheiro e acesso consegue achar meios para diminuir a contaminação entre si, e aí isola o agente infeccioso entre a população que está autorizada a morrer. Isso, que está acontecendo agora com o coronavírus e pode ser que aconteça de novo mais para frente, não é nada novo, é o caminho natural que as doenças infecciosas seguem no nosso país.”
Para quebrar este ciclo, é preciso mais do que medidas imediatistas de combate a surtos epidêmicos, que são importantes, mas não resolvem o verdadeiro problema: o racismo estrutural que vem desde os tempos de colonização. “No Brasil, logo depois da escravidão, nunca houve políticas para integrar os negros na população”, diz a especialista da SBMFC. “A população negra pode até ser a maioria em número, mas é minoria em poder, e não é representada, está sempre na subalternidade.”
A pandemia pode até ter feito parcelas da sociedade civil finalmente enxergarem populações vulneráveis e invisibilizadas, mas seu efeito equalizador para por aí — porque, pelo visto, este será mais um episódio da história com o qual vamos aprender muito pouco ou, talvez, nada.
Fonte: Galileu