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Roger, do Bahia e Marcão, do Fluminense, vestindo a camisa do Observatório Contra a Discriminação Racial no Futebol. |
A entrevista que o treinador do Bahia, Roger Machado, concedeu após a derrota da sua equipe para o Fluminense repercutiu muito mais que o resultado da partida, principalmente, porque não é comum alguém expor as obviedades do "racismo à brasileira" assim, ao vivo. Aproveitando o Dia do Professor, segue a transcrição que fiz da sua resposta sobre a campanha do Observatório Contra a Discriminação Racial no Futebol, e que acabou se tornando uma verdadeira aula sobre o racismo institucional no futebol e na sociedade como um todo:
Não deveria chamar atenção e
ter uma repercussão grande dois treinadores Negros estarem se enfrentando na
área técnica, depois de terem tido uma passagem como protagonistas dentro do
campo. Pra mim, isso é a prova de que existe um preconceito, porque é algo que
chama atenção, à medida em que a gente tem mais de 50% da população Negra e a
proporcionalidade que se representa não é igual.
Eu acho que a gente tem que
refletir e se questionar: se não há preconceito no Brasil, por que é que os
Negros “conseguem” ter um nível de escolaridade menor que o dos brancos?
Por que 70% da população carcerária é Negra? Por que quem mais morrem são os jovens Negros no
Brasil? Por que os menores salários
entre os brancos e Negros são pros Negros? Entre as mulheres brancas e Negras,
são pras Negras? Entre as mulheres, por
que quem mais morrem são as mulheres Negras?
Há diversos tipos de
preconceito. Nas conquistas pelas mulheres, por exemplo, hoje, nós vemos
mulheres no esporte, como você [falando com a jornalista do Fox Sports], mas
quantas mulheres Negras têm comentando esporte? Então, nós temos que nos
perguntar: Se não há preconceito no Brasil, qual é a resposta que tem
relacionada a isso?
Pra mim, nós vivemos um
preconceito estrutural. Institucionalizado. E quando eu respondo pras pessoas
que eu nunca sofri preconceito diretamente, a ofensa, a injúria, ela é só um
sintoma dessa grande causa social que nós temos. Porque a responsabilidade é de
todos nós, mas a culpa desse atraso, depois de 388 anos de escravidão é do
Estado. Porque é através dele que essas políticas públicas que, nos últimos 15
anos, foram institucionalizadas e resgataram a autoestima dessas populações,
que, ao longo de muitos anos, tiveram negado o acesso a assistências básicas,
elas estão sendo retiradas nesse momento.
Na verdade, esses casos que
estão havendo agora de aumento de feminicídio , homofobia, os casos diretos de
preconceito racial, como eu disse, é um sintoma, porque a estrutura social é
racista. Ela sempre foi racista. Porque nós temos um sistema de crenças e
regras que é estabelecido pelo poder. E o poder é o poder do Estado, é o poder
das comunicações, é o poder da igreja.
Quando esses poderes não
enxergam ou não querem aceitar e assumir
que o racismo existiu e que precisa haver uma correção nesse curso, muitas
vezes dizem que nós estamos nos “vitimando” ou que há um “racismo reverso”. Mas
a bem da verdade é que 10 milhões de indivíduos foram escravizados. Mais de 25
gerações. Isso passou pelo Brasil Colônia, pelo Império e só mascarou no Brasil
República. E a gente precisa falar sobre isso. Nós precisamos sair da fase da
negação.
Nós negamos: “não, eu não
falo sobre isso porque não existe racismo no Brasil”, em cima do mito da
democracia racial. Negar e silenciar é confirmar o racismo. E a minha posição,
que eu ocupo hoje, como um Negro na
elite do futebol brasileiro é pra confirmar isso. O maior preconceito que eu
senti não foi o de “injúria racial”. Eu sinto que há preconceito quando eu vou
no restaurante e só tem eu de Negro. Na faculdade que eu fiz, só tinha eu de
Negro. E isso é a prova pra mim.
Mas, mesmo assim,
rapidamente, quando a gente fala disso, ainda tentam dizer: “não há racismo, ta
vendo? Você tá aqui. Você é a prova de que não há racismo”. Não, eu sou a prova
de que há racismo porque eu tô aqui.
(Roger Machado, técnico do
Bahia, em 12 de outubro de 2019)